domingo, 30 de maio de 2010

DOIS ANOS EM UM.
As grandes empresas registraram vendas recordes nos primeiros três trimestres e sofreram muito com a crise nos últimos meses de 2008. No balanço final, passaram pela prova de fogo, fechando o ano com um crescimento de 5%


O ano de 2008 vai entrar para a história das grandes companhias brasileiras. Ao longo de 12 meses, muitas delas viveram a experiência de ir repentinamente da euforia à depressão. Os primeiros três trimestres foram dignos de entusiasmo, com o PIB apresentando um aquecimento progressivo. No terceiro, o crescimento alcançou 6,8% sobre o mesmo período de 2007, taxa que não se via desde o segundo trimestre de 2004. Então, no final de setembro, a crise global atingiu a economia brasileira de forma mais violenta do que o previsto inicialmente. Nos meses de outubro, novembro e dezembro, o desempenho de muitos setores -- sobretudo aqueles voltados para o mercado internacional -- embicou para baixo, e o PIB do último trimestre do ano fechou com queda de 3,6% em relação aos três meses anteriores.

A crise econômica mundial poderia ter sido catastrófica para o Brasil. Não foi. O país, seu mercado interno e suas empresas demonstraram uma resistência que surpreendeu o mundo. 'Foi um enorme teste de fogo', diz o italiano Virgilio Cerutti, executivo que assumiu a presidência da fabricante de autopeças Magneti Marelli para a América Latina em junho do ano passado. 'Quando cheguei, me disseram que as mudanças acontecem muito rapidamente no Brasil, mas eu não poderia imaginar que fosse tanto assim.'

O desempenho da Magneti Marelli (nº 262) é exemplar para ilustrar a inversão de tendência que se viu no último trimestre do ano passado. Segundo Cerutti, antes de a quebradeira começar nos Estados Unidos e contaminar o resto do mundo, a unidade brasileira da empresa registrava aumento de vendas de quase 40% em relação a 2007. No último trimestre, a média de faturamento mensal caiu 70% em comparação com o registrado em setembro, o último mês de pujança. O efeito desses três meses tão deprimidos levou a Magneti Marelli a terminar 2008 com faturamento de 704 milhões de dólares, apenas 1% acima do resultado do ano anterior, mas ainda assim com lucro de 21 milhões de dólares. Para outras empresas, porém, a reversão significou ver esvair a rentabilidade. 'Foram três meses de pesadelo', diz o mexicano Patricio Mendizábal, presidente da operação brasileira da Mabe (nos 508 e 587), dona das marcas GE e Dako de eletrodomésticos. Depois de um primeiro semestre promissor, a empresa fechou o ano com receita de 606,5 milhões de dólares, queda de 6,7% em relação a 2007.

Os números apresentados nesta edição de MELHORES E MAIORES mostram que, em maior ou menor grau, o choque da súbita passagem de um momento favorável para outro de adversidade foi sentido pela maioria das empresas. No conjunto, as 500 maiores companhias da indústria, do comércio e de serviços em atividade no país registraram em 2008 receita de 846 bilhões de dólares, cifra ainda 5% maior que a de 2007, que já havia sido um ano excepcional para a economia brasileira. Outros indicadores, como o total de empregados (aumento de 16,5%) e o valor das exportações (elevação de 12%), continuaram positivos, mantendo a tendência dos últimos anos. O impacto da crise foi sentido nos lucros das 500, que apresentaram queda de 31,5%.

Por esses e outros números fica evidente que, não fosse a mudança de circunstâncias -- uma mudança nada trivial, por se tratar da maior contração da economia mundial registrada em 80 anos --, as empresas e, por consequência, a economia brasileira poderiam celebrar um ano brilhante. No balanço final de 2008, o país ainda apresentou crescimento de 5,1%, acumulando o segundo ano consecutivo com taxa acima de 5 pontos percentuais. E, ao que tudo indica, tem chance de encerrar 2009 com algum crescimento -- ou, na pior das hipóteses, com uma pequena queda --, resultado que pode ser considerado vitorioso diante do previsto para as economias mais desenvolvidas. 'O Brasil sofreu efeitos importantes, como queda de exportações, dos investimentos e restrição de crédito, mas são reflexos periféricos, todos originados lá fora', diz o economista Claudio Haddad, presidente da escola de negócios Insper, ex-Ibmec São Paulo.

Para as empresas, o impacto da turbulência no Brasil ficou longe do sentido pelas companhias na Europa, no Japão e nos Estados Unidos, o epicentro da crise, onde o PIB avançou apenas 1,1%. O ano de 2008 foi o pior na história de quase seis décadas da Fortune 500, a mais respeitada publicação sobre o ambiente corporativo americano. Lá, o lucro somado das maiores empresas caiu 85% em comparação com o obtido em 2007. A seguradora AIG teve um prejuízo de 99 bilhões de dólares, a maior perda já registrada pelo anuário. Outras 11 companhias se juntaram ao grupo dos 25 maiores prejuízos publicados pela revista em 55 anos. Ícones como as montadoras General Motors, Ford e Chrysler ruíram. Diferentemente do que aconteceu no Brasil, a economia americana já estava em recessão moderada desde janeiro de 2008 e enfraqueceu ainda mais a partir de junho, quando subiu o nível de inadimplência e grande parte das hipotecas de imóveis começou a ser renegociada.

A restrição ao crédito e o esfriamento do comércio exterior foram os dois principais meios pelos quais a crise dos países desenvolvidos chegou ao Brasil. Num primeiro momento, com o corte de linhas internacionais de financiamento e o aumento da cautela dos bancos locais, até mesmo grandes empresas no país tiveram problemas de liquidez, com dificuldade para obter capital de giro. Estragos financeiros mais sérios ocorreram apenas de forma localizada, abatendo quem havia feito apostas em operações de derivativos sem levar em conta a possibilidade de uma virada no câmbio -- que ocorreu com uma desvalorização do real frente ao dólar. Mas, enquanto nos Estados Unidos o governo se desdobrou em medidas de salvamento, aqui casos como o da Aracruz (nº 161) e o da Sadia (nº 33), cuja soma dos prejuízos em 2008 chegou a 3,4 bilhões de dólares por causa de operações equivocadas no mercado financeiro, foram resolvidos no âmbito do mercado -- ambas foram incorporadas por concorrentes.

As empresas exportadoras, especialmente de produtos manufaturados e de minérios, estiveram entre as que sofreram mais. As vendas de automóveis, calçados e têxteis, entre outros produtos, fecharam o ano em queda, devido à redução generalizada da demanda no mundo. No setor de minérios, a Vale (nº 3) perdeu tanto em volume de vendas para a China quanto em preço, após anos de seguidos aumentos. A baixa de preços também afetou no final do ano alguns produtos do agronegócio, mas em menor grau. A Amaggi (nº 114), uma das maiores produtoras de soja do país, faturou 1,6 bilhão de dólares, 64% mais que no ano anterior. 'No final de 2008, praticamente 90% de nossa meta de comercialização já estava concluída, com preços altos porque vendemos mais cedo a produção', diz Pedro Jacyr Bongiolo, presidente do grupo Amaggi.

Uma vantagem do Brasil foi a resistência de seu mercado interno. Afora algumas perdas mais contundentes em empresas industriais e exportadoras, como se deu na Embraer (nº 38), que demitiu 4 200 funcionários ao sofrer corte imediato de 30% nas encomendas de aviões, a renda e o emprego foram preservados. Isso explica o bom desempenho de setores mais diretamente ligados ao mercado doméstico, como os de energia, construção, comércio varejista, bens de consumo e telecomunicações. Das 35 empresas do setor de serviços listadas entre as 500 maiores do país, apenas cinco reportaram prejuízo em 2008. No conjunto, o faturamento dessas empresas evoluiu 9% em relação aos resultados alcançados em 2007. A operadora de telefonia celular Claro (nº 28) faturou 5,7 bilhões de dólares no ano passado, montante 5,2% maior que o de 2007, e teve lucro de 230 milhões de dólares. 'Dos nossos 8,5 milhões de novos clientes,
3 milhões foram conquistados justamente no último trimestre de 2008', diz João Cox, presidente da Claro.

O comércio varejista obteve alta de vendas de 13% em relação a 2007, mas lucrou 23% menos. 'Nesse setor, mais heterogêneo, as variações se explicam em parte pelos diferentes impactos sobre cada segmento', diz Alexandre Andrade, analista de varejo da consultoria Tendências. Em períodos de crise e de incerteza em relação ao futuro, o consumidor se retrai. Os primeiros produtos afetados pela cautela são os fortemente dependentes de crédito, como automóveis e imóveis. Nesses dois casos, o governo agiu como bombeiro, reduzindo impostos dos carros e de materiais de construção e lançando um pacote de incentivo imobiliário, o programa Minha Casa, Minha Vida. Segmentos que não foram alvo de bondades sentiram. A Renner (nº 149), uma das maiores redes de lojas de roupas do país, precisou se adaptar ao novo ambiente. 'No final de 2008, fomos atingidos pela primeira onda de impacto da crise, gerada por uma queda da confiança do consumidor no futuro', afirma José Galló, presidente da Renner. 'Partimos para ações estratégicas de defesa, com a redução de despesas e a revisão de contratos e do plano de expansão.' De acordo com ele, o plano de abrir 15 lojas em 2009, como a Renner fez no ano passado, foi ajustado para oito inaugurações.

Ao final do primeiro semestre de 2009, boa parte do cenário sombrio da virada do ano já havia se dissipado. 'O contágio da crise na economia brasileira se mostrou temporário', afirma a economista brasileira Marcelle Chauvet, professora na Universidade da Califórnia. Empresas que haviam sofrido retração voltaram a trabalhar com a perspectiva de crescimento. 'Com a redução do IPI nos nossos produtos, maio de 2009 foi o melhor maio de nossa história em vendas', diz Mendizábal, da Mabe. No dia 30 de junho, a empresa mexicana anunciou a compra das fábricas da concorrente BSH Continental no Brasil. No mesmo mês, a indústria automotiva registrou vendas de quase 300 000 carros, número que representou um recorde na história de médias de vendas mensais e um crescimento de mais de 4% em relação ao mesmo período de 2008. Cerutti, da Magnetti Marelli, afirma que teve sua segunda surpresa com o Brasil. Segundo ele, o faturamento da empresa, com a mesma velocidade com que caiu no final do ano passado, vem se recuperando desde fevereiro. 'É um daqueles cenários em 'V' perfeitos, que a gente acha que só existem nos manuais de finanças. Nós só caímos até fevereiro e só subimos desde então', diz Cerutti. A recuperação da Magneti Marelli ainda não é plena porque 20% de seu faturamento depende de exportações, principalmente para Estados Unidos e Europa. Ou seja, para completar, só falta o mundo desenvolvido engatar uma marcha mais forte.

Disponivel em http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/mm2009/economia/dois-anos-481664.html

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